Música de dentro, 2014

artes visuais texto

Era um jogo bem simples. Tinha que escutar a música de dentro do corpo e seguir o som do desejo, desenhar a melodia do desejo. Era por ela que caminhávamos. E eu escutava bem. O que tu fazes? Escutas bem. Mas tens que prestar atenção porque o medo cria ruídos na música, como uma rádio fora de sintonia, e fica muito difícil escutar o desejo assim. Se segues os traços do ruído, crias cenários imprecisos, indecisos. E vejo que tens medo, não tens?

Para, respira um pouco, presta atenção. Escuta a tua melodia interna. Falava e mexia os braços, fluida, determinada, linda. Tu vais desenhar essa tua melodia. Percebe os diferentes sons que a compõem, como quando tu distingues o som de cada instrumento, ou das vozes, numa música. Tu vais seguir um desses sons, vais desenhá-lo com as mãos, como se estivesses usando um lápis. Vai caminhando e desenhando o som, as notas, as subidas e descidas da melodia. O traço do desejo é o mais bonito. Desenha esse. Podes usar o corpo todo se quiser. Sabias que é seguindo os traços do desejo que desenhas teu cenário?

Sê precisa no movimento se estiveres conduzindo, para o outro poder te acompanhar. Sê clara nos teus passos, ensina, mostra teus desejos. É importante. Tu te viras e sempre pode ter alguém te seguindo. E aí tu passas a segui-lo. Quando afinais os passos não dá pra perceber qual dos dois está conduzindo, vira uma dança. O desejo dos dois, juntos, cria um som tão limpo que protege dos outros ruídos. Nessa hora podeis até parar um pouco o movimento, descansar. E os desejos ficam ali só circundando os corpos. Funciona quando os desenhos se encontram. É tão bonito. Como um abraço. Protege dos ruídos, constrói a mais linda das cidades.

Tem dias, alguns dias, em que o som do desejo vem bem claro, eu fecho os olhos e me entrego e desenho traços leves e seguros, precisos. Danças comigo e construímos a cidade que é a nossa.

Mas nesses dias, sempre meia hora depois do sol se pôr, eu me perco. Como se o teu desenho não me quisesse mais. Tuas noites não são minhas. Vais embora, conduzir outro corpo com teu desejo. Levas embora meu lápis, minhas mãos e meus braços e começo a desenhar com meu corpo o som abafado do desejo pelos ruídos do medo. Já não consigo distinguir. Meu movimento fica duro, o traço cheio de falhas. Rolo pelo chão e machuco os ossos. Sabias que os poros é que produzem o som do desejo, como um sopro que exala por todo o corpo, impulsionando todo o corpo? O medo sufoca essa brisa nesses dias. Tento acompanhar caminhos que já estavam lá esboçados. Sai quase sem intensidade meu traço. Naquele dia fiquei ainda por umas duas horas reforçando os traços que fizera antes, iluminada pelos nossos desejos. Mais duro, né? É que fica menos solto, mais controlado, quando re-desenhamos. Minha pulsação ficou parada ali, no cruzamento onde teu desejo não me quis mais.

Mantém a fluidez do movimento, dá continuidade, fica muito mais bonito. Dá voz pro teu desejo, desenha. E nesses dias deixo sair, caminho devagar e aberta, desenho cidades que não serão habitadas.

Tu te perdeste, acho que aquele desejo não era o teu. Aqueles braços também não eram os teus, e nem aquela cidade que pensaste estar desenhando. Abre o olhar. Toma cuidado pra não perder o som, não deixar sumir. Eu achei que soubesses desenhar.

Para, escuta, identifica o som, o instrumento. Parece de sopro. Parece de água. O desejo tem som de água correndo. Mas naquele outro dia tinha água vinda de todo lado, suor, lágrimas, nariz escorrendo, tapava meus poros e deles não saía nada. Não reconheci o som do desejo. Perdeu-se. Perdi-me na cidade que construí, de ar denso e muito calor, com ruas e corpo cheios de buracos e soluços.

H.R.

Projeto Disturbing City, trabalho inspirado nos contos As cidades e os desejos de Ítalo Calvino (em As cidades invisíveis).